Eu e o outro: a projeção entre as pessoas

Os entendimentos sobre o eu e o outro e a projeção estiveram presentes no questionamento das pessoas acerca de suas vidas e do sentido da realidade vivida e experimentada por elas ao longo da história da humanidade.

Ainda que a clareza sobre esses termos não estivesse conscientemente presente nas dúvidas e indagações que povoavam as mentes, atualmente sua influência em nossas vidas é um fato inegável.

Nesse artigo levantarei alguns dos questionamentos mais comuns que podem ocorrer durante nossas experiências individuais de interação com os outros e com coletividades mais amplas.

O objetivo principal é mostrar que, por mais que tenhamos uma personalidade individual peculiar, somos atravessados por crenças, certezas e hábitos que acabamos incorporando e que não são nossos, visto que foram socialmente construídos e repassados a nós ao longo de toda a vida.

Acredito que é na interação com os outros que percebemos com mais força nossos valores, talentos, crenças e limitações, incluindo aquilo que nos foi imposto arbitrariamente e que não passou de uma crença, limitação ou inconsciência dos nossos interlocutores.

A percepção interconectada entre o eu e o outro

Você lembra da sua infância até os 7 anos? Você lembra da sua infância até os 12 anos? E da adolescência e juventude? As boas memórias dessas épocas envolviam o quê? O que você gostava de fazer? Quais eram os seus talentos? Pelo que você se destacava? Melhor ainda: O que você sentia que fazia muito bem e amava fazer?

Essas são apenas algumas das perguntas sobre as quais podemos nos questionar para recordar quem éramos, o que mais amávamos em nossas vidas e como nos sentíamos livres vivenciando especificamente esses momentos.

A sensação de alegria e liberdade que esses momentos nos proporcionavam é precisamente aquilo que dá sentido às nossas vidas e que perdemos ao longo da nossa inserção na sociedade, principalmente na vida adulta que é marcada pela entrada no mercado de trabalho.

No entanto, algumas vezes começamos a ser podados dentro da própria família. Nossos pais não fazem por mal, eles nos amam. Eles fazem porque foi o padrão segundo o qual foram educados e o modelo de vida para o qual foram criados. Uma vida de trabalho, responsabilidade com o coletivo e a construção de estruturas úteis para a sociedade.

Se aos 7 anos você ouviu frases do tipo “Você precisa ler o que está escrito no livro e não inventar a história com base nas figuras” não se sinta mal, você não foi uma criança ruim ou burra. Seu pai apenas quis te preparar para o mundo e a forma como ele pôde dizer isso foi te repreendendo, afinal ele não foi criado de maneira diferente.

Se recordar disso te faz sentir triste, lembre que o mundo agora é um lugar diferente e que você é um(a) adulto(a) que pode viver a vida de outro modo e ensinar as pessoas de outra maneira, considerando e reconhecendo a criatividade e inventividade delas.

Se você ouviu dos adultos que era “branca como um monte de neve” e que por isso devia haver algo de errado com você, afinal pessoas saudáveis tem “rostos corados”, e que você era, ou ainda é, “Magra demais. Desse jeito vai sumir!”, não se sinta mal. É apenas a tua singularidade.

Se na adolescência você ouviu da sua amiga que a parte mais desajustada do seu rosto é seu nariz, que “é um pouco grande”, não se zangue. Teu rosto, teu nariz e tuas características corporais contam a tua história, tua origem, tua especificidade. Você nasceu assim e não há nada de errado nisso!

Durante a faculdade algum dos colegas que, quando podia, te escolhia para fazer trabalhos em grupo alguma vez disse que “A vida de quem trabalha e estuda não é mole e você está aqui só estudando”? Nada mais que uma forma “carinhosa” de dizer que “Você não faz mais que sua obrigação!”. Depois disso a pessoa continuou do teu lado sempre que era conveniente e você não entendia os motivos das eventuais agressões gratuitas?

Calma! Estou aqui para dizer que você não tem problemas. Ao menos não no sentido que as pessoas te fizeram acreditar. Você vai deixar de viver e fazer o que ama porque te disseram que você não é bom(a) o suficiente? Por que te disseram que outras coisas eram mais importantes ou relevantes do que os teus objetivos? Por que te disseram que você deveria mudar? A vida é sua! Viva como você se sente bem!

Eu, o outro e a projeção entre nós

De fato nascemos, crescemos e aprendemos a nos enxergar e perceber nossos limites a partir dos outros. O bebê não leva meses até perceber que não é uma extensão da mãe? Depois disso levamos anos até perceber que não somos uma extensão da sociedade. Somos indivíduos vivendo em coletividade, mas a definição do sentido da vida é diferente e exclusiva para cada um(a) de nós.

É nesses momentos de auto percepção que nos damos conta dos motivos pelos quais sentíamos raiva, indignação, tristeza e até decepção antes de passarmos a introjetar e sentir vergonha todas as vezes que alguém apontava algum “defeito” em nós.

Nos acostumamos a questionar o que havia de errado conosco e, em alguns casos, até sentimos raiva por ser como éramos quando, na verdade, os comentários que ouvíamos não passavam de meras críticas.

Críticas direcionadas à nossa personalidade e aos nossos talentos, dificilmente aos nossos comportamentos, e quase sempre sem conteúdo, sustentação e fundamentação.

É mais fácil nos enxergarmos nos outros, afinal crescemos aprendendo a fazer isso, logo também é mais fácil projetarmos nossas falhas, limites e fracassos nos outros. Como é mesmo o ditado? “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

E a partir do momento em que percebemos isso podemos realizar novas escolhas por meio de novos questionamentos. As pessoas que me criticaram ou criticam viveram o que eu vivi? Elas realizaram as escolhas que eu realizei? Abriram mão do que eu abri e empenharam os esforços que eu empenhei? Elas fizeram movimentos que mudaram totalmente suas vidas mais de uma vez? Não?! Então que autoridade elas têm sobre mim?

Como seres humanos somos animais sociais por definição. Aprendemos muito mais rapidamente na convivência grupal. Ao nos conscientizarmos que experimentamos o mundo e enriquecemos nossa percepção compartilhando ela com os demais também é importante nos recordarmos que nossa individualidade floresce na solidão.

A construção social das ideias

Gosto da frase da psiquiatra e escritora Ana Beatriz Barbosa Silva que diz que nos alienamos no coletivo e transcendemos e evoluímos na individualidade. Não defendo com isso que joguemos fora a sociedade e suas estruturas, sem as quais não vivemos, nem os indivíduos que a compõem.

Acredito na fluidez entre indivíduo e sociedade, um coexistindo sem a anulação do outro. Afinal, são as tomadas de consciência individuais que refletem nas mudanças coletivas. Por mais que eu, o outro e nós tenhamos uma visão diferente da vida é vivendo nossas essências e objetivos que nos percebemos todos felizes.

E o fato de nos sentirmos felizes e satisfeitos pela certeza de quem somos enquanto indivíduos gera a oportunidade de alterar ideias socialmente construídas.

Quando percebemos que nos sentimos infelizes, amargurados e decepcionados com a vida é hora de questionar se abandonamos nossa individualidade e nossos talentos. Talvez porque nos deixamos convencer que “a vida é dura” e porque “os boletos continuam a chegar”. Passamos a nos encaixar num sistema pré-definido em prol do funcionamento de um coletivo que castra nossa liberdade?

E afinal, o que é liberdade? Ter um trabalho ou emprego estável? Trabalhar 12 meses para ter direito a tirar 30 dias de férias uma vez ao ano? Ter uma casa, carro, filhos, construir uma “família tradicional”? Bater metas todos os meses na empresa onde trabalhamos, nos esforçar, dedicar e empenhar para sermos promovidos de cargo e então receber aumento salarial? O que é liberdade para você?

E se percebermos que somos infelizes mesmo tendo conquistado tudo o que a sociedade coloca como bom e bonito? O problema está em nós ou nos ideais que pensamos ser nossos? Crises desse tipo podem suscitar questionamentos que nunca enfrentamos antes como indivíduos.

Então podemos interrogar: Que coletivo é esse no qual estou inserido? A qual finalidade ele serve? Eu me sinto em meio a uma “corrida de ratos”? E o mais importante: Eu quero investir minha vida e meu tempo em algo pelo que não sinto alegria, felicidade, motivação e paz ao realizar?

O sentido da vida e a essência da individualidade

Considerando todas as reflexões levantadas é possível perceber o quanto nossas vidas são influenciadas pela sociedade na qual vivemos.

Desde a família onde nascemos e crescemos, a comunidade, a escola, até alcançar coletivos maiores e mais plurais, como a universidade e o mercado de trabalho, nossa personalidade sempre será defrontada com a de outras pessoas e com as regras de interação social.

Nessas interações e em possíveis embates é saudável lembrar que a visão de mundo do outro não é a correta. Até porque não existe certo e errado. Existe a minha perspectiva, a partir do meu ponto de vista, e a sua perspectiva, a partir do seu ponto de vista.

E como eu sou a única pessoa responsável pela minha felicidade, cabe à mim perceber quais são meus talentos, o que eu mais amo fazer, viver e exercer e como isso pode contribuir para o meu desenvolvimento pessoal e para o desenvolvimento de outras pessoas com as quais convivo, além do coletivo como um todo.

É abraçando essa consciência que seremos capazes de ser felizes e, por tabela, alcançar a tão falada “mudança social” cujo significado tem se perdido num amontoado de indivíduos confusos por estarem desconectados de si mesmos.

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